Não foi preciso a mãe chamar...
A ansiedade com que se havia deitado tratou de o fazer madrugar. Ainda o relógio da sala não se tinha pronunciado às oito badaladas e já os meiotes de Vitorino se passeavam pela cozinha. O odor de que ontem sentia falta estava hoje ali e evidenciava-se a modos de o levar a abraçar a cintura da mãe, algo que do alto dos seus doze anos já considerava humilhante, caso fosse visto por algum dos parceiros de escola.
Era canela, pinhão, leite e ovos, raspa de limão, calda doce para aqui, massa crua para ali, sonhos perfeitos e rugir em som estridente na fritadeira, colher de pau incessante na árdua tarefa de mexer o leite creme e o avental... O mesmo avental de sempre, à cintura de sua mãe, o mesmo odor, que outros estranhariam, mas Vitorino conhecia e mantinha como assunção de que tudo estava perfeito, assegurado pela sensatez e sabedoria da mais bela mulher de todas, a sua mãe!
Olhou pela janela e tudo estava perfeito... O tempo ameaçava chuva mas Vitorino tinha a certeza de que não passaria dali. Afinal, era véspera de Natal e nas vésperas de natal nada pode acontecer de mal. O frio que se adivinhava lá fora levava-o a cerrar os olhos e valorizar o quentinho da cozinha, a cozinha da véspera de Natal.
De imediato se lembrou que tinha tarefas e, mesmo que não o fizesse, a mãe, autoritária, se encarregaria de o lembrar. Não, desta vez, não se desfaria em lamúrias...
Era véspera de Natal, e nas vésperas de natal nada pode acontecer de mal!
Todos os pensamentos apontavam à noite que ali se desenhava. Todos os pensamentos serviam para amortecer o peso da carga de lenha que tinha de transportar para junto da lareira. Todos os pensamentos ajustavam as inúmeras ordens que a mãe lhe dirigia no sentido que, ela própria, conseguir preparar o banquete da noite. Ela própria atarefadíssima, ainda que, no pensamento de Vitorino, houvesse certezas de que estaria tão feliz e extasiada quanto ele.
Ainda no canto da lenha, já abrigada há uns meses e que, pela concentração em tão pequeno espaço, exalava um odor a mofo que, também este, identificava como "o cheiro certo das coisas", ali, enquanto recolhia, um a um, os melhores cavacos e os imaginava em lume, mais logo, e de como esse lume lhe invadiria olhos e mente em mais uma contribuição de felicidade certa, viu passar o pai. Galochas calçadas e samarra vestida, ia lá atrás, junto ao tanque, onde um daqueles cestos da vindima conservava o bacalhau de molho e o protegia das artimanhas do gato que não tinha dono. Era a hora certa... o Pai sabia tudo destas artes dos tempos e preparos das vitualhas festivas. Com a mãe, formavam a equipa perfeita na arte de manter a felicidade familiar que, como todos sabem, depende muito dos prazeres da boca. Estava perfeito... Cada lombo retirado da água, só possível à mão única porque o pai era, ele mesmo, oponente e abrangente, não só de sentimentos mas também estrutural, era como cada um dos episódios da telenovela da noite, grande e de previsível conjugação de sensações. O pai sabia mantê-los no ponto, antes de perder todo o sabor da salga porque o bacalhau, como ele dizia, deve saber ao que é! Vitorino cedo tinha notado este erro de noção, porque tinha a certeza de que o bacalhau, antes de capturado e preparado, não sabia a sal nenhum! Mas quem queria saber disso? Era uma das frases feitas que se acostumara a ouvir e por nada deste mundo queria deixar de o fazer.
Deu por si a acrescentar um cavaco ao braçado a cada posta de bacalhau que o pai acrescentava ao balde, aquele balde que havia sido aproveitado de algo comprado na venda, mas cujo desgaste estrutural já não permitia saber o quê.
Mais havia a fazer, e ainda tinha de ir ao sótão... A quantidade excecional de gente que se sentaria mais logo à mesa obrigava a que todo o arsenal de bancos disponíveis na casa fosse preparado e limpo, sempre na incerteza de estar assegurada a plenitude de rabos sentados a rigor.
Todos os pensamentos incidiam no serão daquele dia, a véspera de natal, a noite cuja única certeza de Vitorino era a de que o sono viria cedo demais, como em todos os anos anteriores, mas acalentava o sonho de, pelo menos desta vez, aguentar mais além, noite dentro, até à missa do galo, onde todos afluiriam, de faces rosadas e olhos brilhantes, e até o mais ríspido se apresentaria embuido do espírito de natal.
Todos os pensamentos projetavam a mais bela noite do ano, e ainda havia tanto para fazer!