Deixa-me viver...
Não queiras governar a minha mente e o meu olhar.
Mantém-te a meu lado, sim, sem perturbar
tenta não me interromper,
e permite-me, sempre, voar!
Não, não me prendas...
Não vês que isso é egoismo teu?
Por favor, deixa-me ser mais eu...
deixa-me navegar o oceano das palavras, das histórias, das lendas,
este mundo só e tão meu!
Porra, não consigo...
Não sei libertar-me desta teia
terás de ser tu a permiti-lo, devolve-me aquela vida tão cheia...
Sim, podes vir comigo,
sempre abrilhantas esta minha figura, decadente e feia!
Apesar disso, prefiro ter-te assim
gosto da tua formosura
e dependo dessa tua doçura
desse teu doce aroma a jasmim
dessa frescura
que me orienta nos dias sem fim.
Já não sei o que quero
sei apenas que espero
de ti, sempre uma ajuda
a palavra muda...
faz-me feliz sem questionar
sem opinar
mas...
Continua a governar
a minha vida, o meu pensar
sem que eu saiba
sem que note
que és tu quem rema este bote
que nos leva até ao mar!
Acordou de madrugada, ainda o sol não se via, com um aperto no peito, o gesto sem jeito... Quem sabe por nada, talvez pelo dia! . O pacto de sangue outrora seguro corria-lhe nas veias em palpitação. O barulho das gralhas na ameixoeira grande era prenúncio de morte ou evidencia de "sande". A visão por cima do muro foi facada no coração! . O corpo lavado à moda antiga no alguidar encostado ao lume, a evidência do envelhecimento batia em qualquer olhar menos atento, a vida deixara de lhe ser amiga provocando dor e azedume... . Em acto de desespero, correndo pela avenida, rosto aflito e amargo de boca, diz quem viu que estava louca, expressão de enterro, num dia de festa e investida. . Foi direta ao poço da vila, aí chegada não hesitou: Sua vida findou alí, não por mão alheia, mas por sí. Fitou o fundo de água e argila, feriu os pulsos e se atirou! . Ora, ele... Recém chegado, envolto em aura de boa nova, quis saber de sua amada... Mas como?! Estava já casada?! Esqueceu tudo o que haviam acordado? O pacto de sangue? Oh Deus! Restava-lhe a cova! . Pela porta da taverna e atravessando a praça os cães o seguiram a correr em direcção à azenha velha... No balcão ficara a botelha alheia à futura desgraça, alheia àquela pressa de morrer! . E foi assim que a romaria para sempre à tragedia ficou associada. Contada de avós para netos, de ratos para insetos, O pacto de sangue travado um dia acabou em dois enterros de uma assentada.
José Eduardo . Resumo da fragância "Jasmim", no romance "O perfumista" de Joaquim Mestre
Pediram-me um poema. -"Para quê?" -"para nada, para nada!" ...podia ser uma desgarrada que provocasse sorrisos em quem lê. . -"Que tal acerca do Amor?" - Perguntei... -"Esse? Ninguém quer saber!" O importante era que, ao lêr, fosse parvo ou Homem de Lei, se convencesse de que era por si, presumidamente, bem sei, que as palavras estariam alí! . -"Pode então ser sobre Amizade?" -"Ah?! Não! Esqueça". Ainda que tal não pareça essa... na verdade, deixou há muito de abundar transformou-se em saudosa raridade que nos habituamos a recordar. . -"Mas então..." - dizia eu... -"se se festeja a Poesia, talvez um canto de louvor à Alegria!" -"Não, não!!!" - Logo se ouvia... -"Ainda não entendeu! Queríamos uma qualquer disenteria, de palavras desconexas, que ninguém compreendesse." ...e talvez a poesia passasse essa falsa ideia de considerações complexas para que qualquer pseudo-intelectual ou poeta de carnaval possa declamar: . -"Aahh! Coiso e tal!!!" . Sem vacilar...
Curto Poema desconexo | por: José Eduardo, em celebração do dia mundial da Poesia.
Tempos houve em que ele não gostava dela… A figura franzina, de pernas espetadas em sapatilhas metodicamente escolhidas em função única do conforto que proporcionam. A cara sardenta, o cabelo cujas pontas finalizavam em pequenos totós porque um corte curto era sempre uma escolha mais prática. Toda a sua figura representava a personificação do estereótipo de criança insípida. Apesar disso era-lhe, a ele, impossível não reparar no brilho que invadia o olhar dela a cada vez que se lhe dirigia.
A ele, que sempre se achou um pacóvio ignorante camuflado numa permanente interpretação de jovem culto e estudioso, arrepiava-o a possibilidade de representar o alvo de tamanha admiração para alguém e, por isso, sentia o coração invadir a garganta e deixar todo o seu interior vazio e frio a cada vez que se cruzavam e os inocentes olhos daquela pirralha se enchiam de sorrisos tímidos e admiração a si destinados.
Mas não… tal não podia ser… Como haveria ele de encarar os demais mancebos a quem acompanhava nos momentos de estroinice se soubessem de tal facto? Como poderia ele continuar a envolver-se no meio esteticamente viril em acto e pensamento? Seria de uma humilhação insuportável… A possibilidade de se ver privado de convivências nas quais sabia de antemão que o seu carácter não se reflectia mas achava que teria de ser assim… Que o seu coração pleno de amor e cavalheirismo para com as meninas estaria enganado e a realidade seria obviamente à moda daquela gente. De tal forma se esforçava por se convencer daquilo que sabia ser mentira que até conseguiu e, assim pensando, nunca poderia retribuir aquela simpatia, aquele fascínio, aquele Amor!!! Tal não poderia continuar… era impossível entusiasmar-se com a adoração que lhe dedicava a menina franzina de pernas espetadas em sapatilhas confortáveis e cujo conjunto sardas / totós lembravam personagens de banda desenhada…
Foi já bem tarde que descobriu o amor, quer dizer… foi já bem tarde que descobriu a lascívia e a devassidão! Ao cabo de tantos anos negando os ímpetos cavalheirescos que lhe invadiam a alma, acabou por descobrir a beleza dos prazeres que os mesmos lhe proporcionavam. Aprendeu que a simpatia e um sorriso comprometido lhe abriam as portas de um mundo cheio de deleites, gozos e delícias indolentes que o transportavam aos campos do transcendente… deliciosamente transcendente…
Mas ó diabo! Como era possível que tudo isto contribuísse para o avivar de memórias?
A cada vez que raciocinava acerca disso, acabava por lembrar a tamanha negação a que a havia sujeitado… a ela, menina franzina de pernas espetadas em sapatilhas confortáveis e sardas e totós que lembravam a banda desenhada… a ela… que agora descobria ter sido o seu único verdadeiro Amor!
Os anos passaram… e a ausência dela nunca o incomodou tanto quanto agora o seu regresso.
O olhar dele perde-se agora por umas longas pernas nada espetadas que, nas suas calças skinny de dupla lã, terminam em moderníssimas (não menos confortáveis) e extremamente femininas sabrinas que passaram a envolver seus pés agora propositadamente delicados.
O pensamento perde-se na finíssima cintura de uma blusa branca com motivos de extremo bom gosto e que apresenta um irresistível decote nada generoso mas pleno de sensualidade e determinação. As sardas não se ficaram pela face e, para ele, isso tornava-a ainda mais presente e complementava aquele novo estilo e personalidade, aquele novo ar… Um ar de mulher confiante, sabida, estudada… Tudo o que ele outrora julgava ter sido.
O tom da sua pele havia escurecido e isso contribuía para acentuar o contraste com o branco do olhos que, pasme-se, continuavam a brilhar… mas já não para ele…
É por isso que sofre agora… Preferia que o ignorasse, mas não, continua a sorrir-lhe, só que já não por admiração. Continua a sentar-se na mesma mesa de café que ele, agora não porque o deseje, apenas porque é simpática e se apercebe que ele é, agora, um desgraçado emocional nada empreendedor…
Dói-lhe ainda mais pela empenhada simplicidade dela… Dói-lhe porque se senta ao pé de si, acende de forma burguesa um cigarro e enceta uma conversa que, dada a forma e conteúdo interessantes, o deveria fascinar mas…
Num mundo que não é meu que desconheço. rejeito... ...ter a alma ao leu e apareço contrafeito na multidão que me ignora por agora ou para sempre vou embora estou ausente... Mas eis que, por entre as sombras derrubando a tristeza negando a pobreza interrompendo o lúgubre momento trazendo-me o alento que precisava apareceste um sorriso me deste e não vejo mais nada só a ti, o arco-íris as sete cores esqueçam-se dores tristezas e afins... Exalte-se a beleza o adorável embaraço a cândida timidez... até te perder por entre a escuridão nunca poder tocar tua mão e só esta vez poder lembrar... lembrar... até mais não.
Gosto de imaginar que todos eles, cada um por si e na sua vez, representam não a personificação da revolta, mas a revolta traduzida num pombo!
Gosto de olhar cada um deles e imaginar que um dia, cada um por si e na sua vez, encetou o "grito de ipiranga" no seu pombal.
Gosto de os ver como seres inconformados que preferiram a dureza da vida na rua e consequente necessidade de busca do sustento à alternativa fácil de ser mais um no bando corredor.
Todos estes pombos, cada um por si e na sua vez, foram desertores da sua última corrida e, dessa vez, foram até olhados com inveja pelos pares que não tiveram coragem de deixar de o ser... Pares!!!
Gosto de os pensar inteligentes, capazes de pensar por si sós, e contentes com a sua nova vida, ao frio, à chuva, odiados por quase todos, não por mim...
Gosto de os equiparar ao louco que vagueia na praça, de distintas barbas e elevadíssimo relevo na pele...
Opto por acreditar que também eles, os pombos, cada um por si e na sua vez, abrandam o seu frenético arrulhar de modo a contemplar o louco que, nas horas de exaltação dessa loucura, solene e veementemente declama épicos poemas que, apesar da sua extrema beleza, nunca ninguém ouvira.
Eu noto que eles, os pombos, apreciam esses momentos e chegam mesmo a confidenciá-lo entre si, o que é raro já que são de poucas falas.
Os pombos... o louco... e eu... Mobílias da cidade velha, tão rica!!!