quarta-feira, 12 de outubro de 2016

da agrestia como modo de vida

Na aldeia de S. Julião era assim que se vivia. Um dia de cada vez. 
Em terra de rural quotidiano, a vivência humana raramente passa disso, produzir para comer e trabalhar para vestir. Cada família parece até ser propositadamente composta por arquitetada exatidão de género e número em função de um destino que jamais precisará ser traçado. Na ideia de cada qual, a fatalidade é fundada à nascença e nem lembra a ninguém encetar qualquer dissertação moral ou psicológica acerca do assunto. Aliás, o esoterismo que esta gente domina resume-se entre as rezas na novena de S. Sebastião e esporádicas consultas à bruxa de Vilar para males que não tenham coragem de apresentar à divindade. 

A família de Abel moleiro não fugia à regra, distinguia-se apenas o método. Abel, homem de mãos rudes e grosso trato, logrou conseguir, não se sabe se por acordos de bebedeira ou pelo temor que a sua fisionomia incutia no entendimento alheio, o consentimento do velho Tone da albarda, antes deste falecer, para desposar a sua filha, a belíssima Amélia que, por tamanha graça, o povo chamava de Melinha. Em tempos de outrora, irreverência feminina era fenómeno escasso e de Melinha, fosse por gosto ou temor, jamais alguém ouviria lamento ou revolta. Se, numa fase inicial, porque ainda vivia o velho, o acanhamento de Melinha pudesse ser entendido como respeito ao enfermo – três meses de cama só a água acabariam por lhe sentenciar a morte – a verdade é que não houve quem lhe apreciasse diferença de atitude após a morte do pai.

Explicado o vil processo de ajuntamento, fácil será a perceção que da união entre formosíssima menina e libidinoso quarentão depressa resultaria descendência. Assim, Melinha achar-se-ía grávida aos 14 anos e, sem conselho de mãe nem orientação de médico, toda a aldeia classificou de inédito – por bem mais rude vocabulário – o nascimento daquela criança, que noutra era gerada. O que já ninguém estranhou foi que apenas esta se tenha aguentado na convivência dos vivos e, fatalidade, a vida não permitiu que Melinha atingisse a idade que lhe permitia perder o pueril e carinhoso chamativo. 
Assim nasceu condenada a pequena Aida do Moinho. Órfã de mãe. A desejar sê-lo também de pai, o Abel moleiro, patife inábil e de modos rudes, herdou do sogro o título mas não a ocupação. Nem mesmo a albarda ao fim do nome, já que tal representava sinal de ânimo físico a que Abel não estava habituado. Porém, à morte da jovem esposa, Abel viu-se obrigado a assumir o funcionamento da azenha da várzea, olhando sempre para o pequeno rebento e ansiando que Aida crescesse rapidamente de modo a que, em pouco tempo, lhe proporcionasse novamente o usufruto da vida de roto burguês. Fácil será perceber que, não gozando de grande simpatia no povo de São Julião e, em acumulação, começarem a ser raras as vezes que destravava o engenho ou tornava a água no açude, lucrou o moinho de vento lá no cimo do monte de Vilar, que passou a ser destino dos sacos de Cereal da aldeia. Nos anos que se seguiram, com o despontar de moça de Aida e o contínuo abandono do moinho, passaria também esta a ser uma família igual às outras, em número e resultado, diferente no método. Era Aida quem, desde criança, assumia obrigações de produzir para manter – que é como quem diz, comer – tratando da lida de casa e do quintal. Abel, esse, adquirira a alcunha de moleiro e de pouco precisava para a manter, remetendo-se a escassas investidas da mó, suficientes para garantir uns copos na taberna do adro, juntando a outros que lhe pagavam para que o vissem ébrio. Percebemos então que, no que toca a trabalhar para vestir, pouco se via. Benditos parcos costumes desta humilde gente da aldeia que de pouca quantidade de trapos se alimentam. 
Por esta altura estará o leitor a desafogar do pensamento o desabafo de consideração acerca da triste vida desta gente. Sê-lo-ía, por certo… Se alguma vez de alegrias houvesse tido conhecimento o humilde povo campesino daquele tempo. Pouco chega a quem nada tem, e era de facto assim naquele tempo, a felicidade morava no aparecimento de singelas coisas ou acontecimentos.

Sem comentários: