domingo, 28 de maio de 2023

O Pedro Macau, ao fim...



sábado, 22 de abril de 2023

Caminho das várzeas revisitado


Era muito bonita esta Aida do Moinho e não era portanto de admirar o constante correrio da vasta variedade de marmanjos em idade de líbido crescente pelo caminho das várzeas. O facto de terminar em pleno moinho do velho Abel e, por isso, não permitir justificações de passagem aleatória e desinteressada, jamais viria a inibir alguém. Além do mais, a natural beleza do local assente em elevadíssima riqueza bucólica sempre foi mais que suficiente para levar famílias inteiras  munidas da cesta do merendelo ou tocadores de concertina nos domingos à tarde. Ali se juntavam cantando, dançando, namoriscando, refrescando os pés no leito do rio que corria molengão ou refastelando-se à sombra depois de mamado o farnel, roendo uma meticulosamente escolhida palha de feno no espaço confinado ao alcance de um braço. Mas isso era aos domingos… Por aquela altura, a presença de Aida era o motivo da passagem, e era fenómeno diário.
Obviamente, Aida sentia-se lisonjeada por tamanha atenção. Nunca foi de alimentar ideias em cabeça alheia por iniciativa própria, era ainda muito nova, mas sabia muito bem ao que vinham todos aqueles rapazes, era por sí, e sabia também que a sua simples presença na romaria de São Sebastião era o suficiente para que uns quantos se informassem junto de outros tantos acerca da identidade daquela jovem menina, formosa, de peito farto.
Disso gostava mas a todos ignorava a pequena Aida. Não os enxotando (gostava de se sentir desejada, ela que era pobre, ao contrário de outras que fidalgas haviam nascido), foi sempre desenvolvendo e aplicando a arte de inibir investidas mais ousadas ou ambiciosas, e tão habilmente o fazia que nunca ninguém ouviu falar da revolta de algum. A pequena sabia cativar amizades e os marmanjos, apercebendo-se da fatal situação de incapacidade para conquistar corpo ou alma, ficavam-se pela amizade empenhando-se, todos sem exceção, na explicação de que, desde o início, jamais lhes havia passado pela cabeça a intenção de posse ou paixão. A verdade é que começavam por rarear as visitas e se dedicavam, a partir dali, à procura de novo alvo dos seus impetuosos disparos de líbido e romance, fosse em São Julião ou nas freguesias vizinhas.

Havia porém – tinha de haver – um moço que lograva convencer os sentimentos de Aida. Tal como num romance deve ser, era ele o que menos se expressava. O João Grande, rapaz que também por alí passava mas que jamais havia investido olhares ou palavras de apreço sobre a bela rapariga. João Grande era filhos de lavradores e donos da maior parte dos terrenos na várzea. Todos os dias por alí passava o Jovem sempre empunhando qualquer ferramenta de trabalho. Da simples enxada à complexa parelha dos bois galegos que puxavam o carro, nunca João por ali passava sem que fosse a trabalho mas sempre Aida saía ao quintal para o ver passar. O simples e respeitoso cumprimento que o rapaz lhe endereçava chegava para alegrar o dia da pequena. Era ele o seu Amor!  


Isto já vem daqui

quarta-feira, 8 de março de 2023

vai à festa, vai à luta

Mulher preta

Mulher branca

Mulher multicolorida

Arco íris

Alma franca

Sofrimento para uma vida

 

Ao trabalho

de manhã

Já de cria despachada

Pela noite

Em terra chã

Já co'a mesa preparada

 

Sinta eu a tua dor

A ver se ainda sai amor

Mesmo em vasto desassossego

Peito ao filho, ventre ao homem

Que em teu corpo ambos comem

E procuram aconchego

 

Erga-se, pois, em riste

O punho dessa alma triste

E alcance a plenitude

dessa tua fêmea condição

Que muito mais do que prisão

É fonte de toda a virtude

 

Assume-te grande ó mulher

Que a tua valoração

Não é quando homem quer,

É a emancipação

 

Baila quando tu quiseres

Vai à festa, vai à luta

E persegue a felicidade

Ocupa o teu espaço

Sejas casta, sejas puta

Domina a eternidade



terça-feira, 9 de agosto de 2022

nem que seja só mais um bocado


lá no risco
vermelho
contínuo
da longa caminhada do tempo,
tem traço fino
traço grosso
tem vida célere
e tempo lento.
o que vivi já não lembro,
mau
bom,
de tudo vi
e aquilo que carreguei no ombro
só eu é que o senti...
ao lembrar o passado, confesso
mais a dor me lembra que o sucesso
mas apresento-me assim
de rosto levantado
pelas mãos do diabo, lavado
porque não me apetece o fim
e por mim
nem que seja só mais um bocado
quero é ficar aqui!


segunda-feira, 21 de março de 2022

domingo, 25 de abril de 2021

fascismo nunca mais

a cada novo instante
deste belo amanhecer
a cada gota refrescante
da neblina de um dia novo
sente-se a embriaguez de um povo
e a coragem toda a crescer
qual erecçao juvenil
ou pensamento pueril
é o sangue a ferver
de sonhos e ideias mil

ergam-se os punhos ao vento
agora que ficou para trás
o cheiro do velho tempo
a enxofre e aguarrás

e em meio da bebedeira
arranje-se pois maneira
de preservar a memória
e que o tempo da miséria
o mantenha a gente séria
bem fundo nos baús da escória

mantenha-se então a coragem
de manter viva a imagem
daquela miséria que existia
ainda que seja dura lembrança
de quando nem sequer era criança
a nossa democracia

peguemos então pelos cornos
e nunca com panos mornos
o baboso mostrengo da reação
esse que se aventura agora
achando que chegou a hora
de reinar o grande cabrão

lembremos pois toda a gente
que aquilo que queremos à frente
não virá pela mão dos jograis
espezinhemos o doido varrido
e gritemos em tom decidido
FASCISMO NUNCA MAIS!!!

José Eduardo



sexta-feira, 2 de abril de 2021

lá vem o charlatão

Lá vem o charlatão
de sorriso proeminente
é de todos o maior cabrão
mas ninguém lho diz pela frente

De tudo ele já viveu
no seu mundo pequeninho
e o que não viveu, inventa
porque a verdade fraudulenta
só ele sabe que a leu
num jornaleco mesquinho

tem ódio ao seu semelhante
a miséria é o que lhe deseja
mas ao rico, seu dono
ao seu poderoso patrono
a bajulação é constante
pois aos seus restos almeja

todos se riem de si
pelas costas, é certo
ninguém ousa ser sincero
com medo do senhor austero
que sabe de tudo por ali
como se estivesse por perto
é o charlatão que lhe conta
esse porco animal de monta
sedento de vingança
de ver sofrer quem se cansa
na luta, na afronta

miserável ser abjeto
que por falta de confrontação
se acha dístico de soneto
pois ninguém lhe diz de perto
que o seu estilo gingão
e o sorriso indiscreto
são desenho direto
dos traços de um cabrão!

pululantemente ridículo
vagueia sorridente
no papel de parvo discípulo
por entre toda aquela gente
os do lado de lá
verdadeiros senhores
mandantes e gestores
que seu nome desconhecem
e os nossos, de cá
mormente trabalhadores
que lutam quando alvorecem
e sorriem, sinceros
por saberem que Roma
não paga a traidores!

José Eduardo

sexta-feira, 24 de abril de 2020

litania da facharia

à conta de um bicho estranho
que nos prende a todos em casa
todos não, intervenho...
porque alguns estão em brasa
aqueles cujo trabalho
além de duro como o c*
os obriga a fazer, sem engenho
dos conselhos, tábua rasa!

Mas dizia que à conta dele
do bicho que se agarra à pele
sem emprego, sem vintém
erguemos todos a mão
e demos força ao pregão
"vamos todos ficar bem"

Mas dinheiro não traz o vento
e para comer já nem fruta
vai daí começa a luta
que os gajos do parlamento
esses grandes filhos da p*
enquanto eu não tiver pão
não festejam a revolução

Vou mas é ligar ao patrão
que prometeu voltar a chamar
esse sim, não é vilão
não festeja a revolução
e logo que isto acalmar
e se for embora a doença
dos bons se vai lembrar
e me dá a recompensa!

Que saudades que eu tenho
é do tempo de salazar
e agora já não me contenho
vou mas é protestar
nas páginas do facebook
nos comentários dos jornais
revolucionários ninguém os atura
"se quereis acabar com o tuc tuc
então ides sachar milheirais"
olhai mas é pró ventura
não é como esses que tais
é homem sem lacunas
não é nenhum gandaio
como esses, os comunas
que se apressam antes de mais
a ir festejar o 1 de maio!

José Eduardo


domingo, 8 de março de 2020

muito homem tem de morrer


Não se enaltece hoje uma qualquer,
não se eleva toda aquela que vier
mas essa que trabalha
a mesma que te arruma a tralha
e que quando te cai o corpo à palha
dá-te a sopa à colher...

Infeliz criatura que serpenteia
porque após a lida vem a ceia
passe ela o dia ocupada
trajando de executiva ou criada
trata tudo sem ganhar mais nada
exigem-lhe ainda um ar de sereia
mas a sua alma cansada
puxa-a com força a sentir-se baleia!

Grite-se pois bem alto à guerreira
fortes vivas à mulher trabalhadora
não a prazo, mas agora
que a arquiteta e a ceifeira
tenham direito à sua hora
que igualdade não é ousadia
felicidade não é heresia
derrube-se a força opressora
que sou eu... és tu... sem fantasia.

Eleva pois a mulher poderosa
tanta vez de franzina aparência
não vás de orquídea, não vás de rosa 🌹
vai de punho erguido em oponência
Contra ti mesmo, se tiver de ser
que para a igualdade ser possivel
muito homem tem de morrer.

José Eduardo

domingo, 22 de dezembro de 2019

a véspera de natal

Não foi preciso a mãe chamar...
A ansiedade com que se havia deitado tratou de o fazer madrugar. Ainda o relógio da sala não se tinha pronunciado às oito badaladas e já os meiotes de Vitorino se passeavam pela cozinha. O odor de que ontem sentia falta estava hoje ali e evidenciava-se a modos de o levar a abraçar a cintura da mãe, algo que do alto dos seus doze anos já considerava humilhante, caso fosse visto por algum dos parceiros de escola.
Era canela, pinhão, leite e ovos, raspa de limão, calda doce para aqui, massa crua para ali, sonhos perfeitos e rugir em som estridente na fritadeira, colher de pau incessante na árdua tarefa de mexer o leite creme e o avental... O mesmo avental de sempre, à cintura de sua mãe, o mesmo odor, que outros estranhariam, mas Vitorino conhecia e mantinha como assunção de que tudo estava perfeito, assegurado pela sensatez e sabedoria da mais bela mulher de todas, a sua mãe!
Olhou pela janela e tudo estava perfeito... O tempo ameaçava chuva mas Vitorino tinha a certeza de que não passaria dali. Afinal, era véspera de Natal e nas vésperas de natal nada pode acontecer de mal. O frio que se adivinhava lá fora levava-o a cerrar os olhos e valorizar o quentinho da cozinha, a cozinha da véspera de Natal.
De imediato se lembrou que tinha tarefas e, mesmo que não o fizesse, a mãe, autoritária, se encarregaria de o lembrar. Não, desta vez, não se desfaria em lamúrias...
Era véspera de Natal, e nas vésperas de natal nada pode acontecer de mal!
Todos os pensamentos apontavam à noite que ali se desenhava. Todos os pensamentos serviam para amortecer o peso da carga de lenha que tinha de transportar para junto da lareira. Todos os pensamentos ajustavam as inúmeras ordens que a mãe lhe dirigia no sentido que, ela própria, conseguir preparar o banquete da noite. Ela própria atarefadíssima, ainda que, no pensamento de Vitorino, houvesse certezas de que estaria tão feliz e extasiada quanto ele.
Ainda no canto da lenha, já abrigada há uns meses e que, pela concentração em tão pequeno espaço, exalava um odor a mofo que, também este, identificava como "o cheiro certo das coisas", ali, enquanto recolhia, um a um, os melhores cavacos e os imaginava em lume, mais logo, e de como esse lume lhe invadiria olhos e mente em mais uma contribuição de felicidade certa, viu passar o pai. Galochas calçadas e samarra vestida, ia lá atrás, junto ao tanque, onde um daqueles cestos da vindima conservava o bacalhau de molho e o protegia das artimanhas do gato que não tinha dono. Era a hora certa... o Pai sabia tudo destas artes dos tempos e preparos das vitualhas festivas. Com a mãe, formavam a equipa perfeita na arte de manter a felicidade familiar que, como todos sabem, depende muito dos prazeres da boca. Estava perfeito... Cada lombo retirado da água, só possível à mão única porque o pai era, ele mesmo, oponente e abrangente, não só de sentimentos mas também estrutural, era como cada um dos episódios da telenovela da noite, grande e de previsível conjugação de sensações. O pai sabia mantê-los no ponto, antes de perder todo o sabor da salga porque o bacalhau, como ele dizia, deve saber ao que é! Vitorino cedo tinha notado este erro de noção, porque tinha a certeza de que o bacalhau, antes de capturado e preparado, não sabia a sal nenhum! Mas quem queria saber disso? Era uma das frases feitas que se acostumara a ouvir e por nada deste mundo queria deixar de o fazer.
Deu por si a acrescentar um cavaco ao braçado a cada posta de bacalhau que o pai acrescentava ao balde, aquele balde que havia sido aproveitado de algo comprado na venda, mas cujo desgaste estrutural já não permitia saber o quê.
Mais havia a fazer, e ainda tinha de ir ao sótão... A quantidade excecional de gente que se sentaria mais logo à mesa obrigava a que todo o arsenal de bancos disponíveis na casa fosse preparado e limpo, sempre na incerteza de estar assegurada a plenitude de rabos sentados a rigor.
Todos os pensamentos incidiam no serão daquele dia, a véspera de natal, a noite cuja única certeza de Vitorino era a de que o sono viria cedo demais, como em todos os anos anteriores, mas acalentava o sonho de, pelo menos desta vez, aguentar mais além, noite dentro, até à missa do galo, onde todos afluiriam, de faces rosadas e olhos brilhantes, e até o mais ríspido se apresentaria embuido do espírito de natal.
Todos os pensamentos projetavam a mais bela noite do ano, e ainda havia tanto para fazer!