sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

em logro


Agora que me largaste a mão
e deste a liberdade de escolher
sei que nada conheço
além de ti
de mim
se diferentes somos de um só
porque em ti me confundo
e na tua vida eu moro
e nada mais vejo para além do vale do teu peito
e nada mais me consome de outro jeito
que a ideia de beber em ti
e de como te dás a mim
por pena
por amor
por vício
ardor
não sei
mas sei que dependo de ti
e sem ti
sem te ter encostada a mim
carne com carne
pele com pele
almas fundidas
tudo é gasoso
efémero
ilusório
porque a cobardia me impediu
de dar o passo em frente
de ser mais diligente
e partir em busca do que sempre te pedi
tu sabias que era assim
que não saberia o caminho para mais além
mas não mo dizias assim
não te atrevias a quebrar a ilusão
de que o barco navegava
não ao sabor do teu vento
mas frutos das minhas investidas ao leme
e tu sabias
sabias que não era eu que entrava em ti
na hora em que nos atravessávamos de paixão
eras tu quem me abraçava
de uma forma diferente é certo
mas fazia-lo porque sabias
tu sabias
sabias que me perderia na hora em que te afastasses
e por intuito de lição
por causa da minha irritação
tu largaste o meu corpo
deixaste a minha mão
e disseste-me: vai!
e eu não fui
não sabia para onde ir
e eu não fui porque me custava decidir
e eu não fui
fiquei ali
olhando-te
olhando-me
fitando a triste figura que teimava representar
e deixei-me estar
fiz de conta que não queria
mas eras tu quem sabia
a razão de eu ficar!

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A Tia Miséria

Havia no princípio do mundo uma velhinha muito pobre e muito infeliz: era conhecida pela Tia Miséria. Só possuía uma casinha arruinada e uma pereira defronte da porta. Tudo sofria com paciência e resignação, mas só uma coisa não desculpava, nem perdoava: que os garotos subissem à pereira e lhe comessem as pêras. Era capaz de dá-las todas sem provar uma, mas indignava-se contra os que lhas roubavam.

Uma noite bateu-lhe à porta um pobrezinho; correu a abri-la e deu ao pobrezinho a migalha de pão que reservava para si. No dia seguinte despediu-se o pobre e disse-lhe que pedisse o que quisesse.

Só peço que as pessoas que subirem à minha pereira não possam descer sem o meu consentimento – respondeu a velhinha.

- Assim será – respondeu o mendigo.

No outro dia, quando saiu à rua, encontrou três garotos em cima da pereira.

- Ó Tia Miséria, perdoe-nos pelo amor de Deus! Tire-nos daqui, não podemos descer.

- Ah! Pois vocês diziam que não eram os ladrões das minhas pêras! Por esta vez, vá; Se lá voltarem hão-de ficar aí muitos anos.

E os garotos desceram e não mais voltaram à pereira.

Um dia de manhã, entrou-lhe em casa uma mulher de horrendo aspecto, vestida de negro e armada de foice, com as asas negras nos ombros e nos pés.

- O que me quer? - Perguntou a Miséria a tremer.

- Sou a Morte: venho buscar-te.

- Já? Pois nem ao menos me dá um ano de espera?

- Não pode ser - respondeu a Morte.

- Faça-me ao menos um favor: suba à minha pereira e colha-me a última pêra que me resta. Quero comê-la, visto que é a última.

A Morte subiu à pereira, colheu a pêra, mas não pôde descer. Pôs-se a chamar a velhinha. Esta respondeu: “Tem paciência, aí ficarás para todos os séculos. És má, tens feito muitas desgraças, roubando muitos pais aos seus filhos pequeninos...”

E a Morte ficou em cima da pereira.

Passados dias tinha a velhinha em frente da sua porta um exército, composto de padres que se queixavam de que não havia enterros, de escrivães que se lastimavam de não ter inventários, de delegados que se doíam de não fazer promoções orfanológicas, de juízes que se queixavam de não receber emolumentos das reuniões dos conselhos de família, das presidências nos actos de licitações e das sentenças em demarcações, enfim, de todos aqueles indivíduos que vivem da morte do próximo. Todos pediam à velhinha que autorizasse a Morte a descer da pereira, mas a velhinha respondia: “ Não quero, não quero e não quero”.

Falou então a Morte do alto da pereira e fez com a velhinha um contrato: poupar-lhe a vida enquanto o mundo fosse mundo. A velhinha consentiu e a Morte desceu. Por isso enquanto o mundo for mundo a Miséria existirá sobre a Terra.

Conto tradicional português, recolhido por Ataíde Oliveira