sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

fandango minhoto



O fandango de uma velha
Fez-me doer a barriga
Já não quero mais fandango
Se não for duma rapariga.

Eu gosto muito de pêras
Sendo elas cabaçais
Eu gosto muito das velhas
Mas das novas muito mais.

Eu dantes para te ver
Sete janelas abria
Agora p’ra te não ver
Outras sete fecharia

Eu gosto muito de ver
As pernas às raparigas
Se são grossas ou delgadas
Se são curtas ou compridas

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

da agrestia como modo de vida

Na aldeia de S. Julião era assim que se vivia. Um dia de cada vez. 
Em terra de rural quotidiano, a vivência humana raramente passa disso, produzir para comer e trabalhar para vestir. Cada família parece até ser propositadamente composta por arquitetada exatidão de género e número em função de um destino que jamais precisará ser traçado. Na ideia de cada qual, a fatalidade é fundada à nascença e nem lembra a ninguém encetar qualquer dissertação moral ou psicológica acerca do assunto. Aliás, o esoterismo que esta gente domina resume-se entre as rezas na novena de S. Sebastião e esporádicas consultas à bruxa de Vilar para males que não tenham coragem de apresentar à divindade. 

A família de Abel moleiro não fugia à regra, distinguia-se apenas o método. Abel, homem de mãos rudes e grosso trato, logrou conseguir, não se sabe se por acordos de bebedeira ou pelo temor que a sua fisionomia incutia no entendimento alheio, o consentimento do velho Tone da albarda, antes deste falecer, para desposar a sua filha, a belíssima Amélia que, por tamanha graça, o povo chamava de Melinha. Em tempos de outrora, irreverência feminina era fenómeno escasso e de Melinha, fosse por gosto ou temor, jamais alguém ouviria lamento ou revolta. Se, numa fase inicial, porque ainda vivia o velho, o acanhamento de Melinha pudesse ser entendido como respeito ao enfermo – três meses de cama só a água acabariam por lhe sentenciar a morte – a verdade é que não houve quem lhe apreciasse diferença de atitude após a morte do pai.

Explicado o vil processo de ajuntamento, fácil será a perceção que da união entre formosíssima menina e libidinoso quarentão depressa resultaria descendência. Assim, Melinha achar-se-ía grávida aos 14 anos e, sem conselho de mãe nem orientação de médico, toda a aldeia classificou de inédito – por bem mais rude vocabulário – o nascimento daquela criança, que noutra era gerada. O que já ninguém estranhou foi que apenas esta se tenha aguentado na convivência dos vivos e, fatalidade, a vida não permitiu que Melinha atingisse a idade que lhe permitia perder o pueril e carinhoso chamativo. 
Assim nasceu condenada a pequena Aida do Moinho. Órfã de mãe. A desejar sê-lo também de pai, o Abel moleiro, patife inábil e de modos rudes, herdou do sogro o título mas não a ocupação. Nem mesmo a albarda ao fim do nome, já que tal representava sinal de ânimo físico a que Abel não estava habituado. Porém, à morte da jovem esposa, Abel viu-se obrigado a assumir o funcionamento da azenha da várzea, olhando sempre para o pequeno rebento e ansiando que Aida crescesse rapidamente de modo a que, em pouco tempo, lhe proporcionasse novamente o usufruto da vida de roto burguês. Fácil será perceber que, não gozando de grande simpatia no povo de São Julião e, em acumulação, começarem a ser raras as vezes que destravava o engenho ou tornava a água no açude, lucrou o moinho de vento lá no cimo do monte de Vilar, que passou a ser destino dos sacos de Cereal da aldeia. Nos anos que se seguiram, com o despontar de moça de Aida e o contínuo abandono do moinho, passaria também esta a ser uma família igual às outras, em número e resultado, diferente no método. Era Aida quem, desde criança, assumia obrigações de produzir para manter – que é como quem diz, comer – tratando da lida de casa e do quintal. Abel, esse, adquirira a alcunha de moleiro e de pouco precisava para a manter, remetendo-se a escassas investidas da mó, suficientes para garantir uns copos na taberna do adro, juntando a outros que lhe pagavam para que o vissem ébrio. Percebemos então que, no que toca a trabalhar para vestir, pouco se via. Benditos parcos costumes desta humilde gente da aldeia que de pouca quantidade de trapos se alimentam. 
Por esta altura estará o leitor a desafogar do pensamento o desabafo de consideração acerca da triste vida desta gente. Sê-lo-ía, por certo… Se alguma vez de alegrias houvesse tido conhecimento o humilde povo campesino daquele tempo. Pouco chega a quem nada tem, e era de facto assim naquele tempo, a felicidade morava no aparecimento de singelas coisas ou acontecimentos.

domingo, 9 de outubro de 2016

João Grande



João, filho de lavradores, gostava de Aida…

João era um rapaz crescido e, por toda a sua vivência, havia já experimentado gostar de muitas raparigas. Porém, desde há uns tempos que achava diferente o sentimento que dedicava àquela pequena que, ainda há pouco, deixara de ser criança.

Não havia dia que passasse sem que João se convencesse a si mesmo de que aquele não era um gostar qualquer, era especial… Era um gostar que lhe apertava a garganta a cada vez que a via no quintal ao passar para as várzeas… Era um gostar que fazia com que sentisse ciúme de todos aqueles marmanjos que rondavam a azenha da várzea em adulação aos atributos físicos da pequena… Era um gostar que o levava a adorar a beleza angelical inerente à idade da pequena e não tanto a opulência do seu peito… Era um gostar que o fazia ter mais gosto no cultivo das várzeas do que das Searas, esquisito num agricultor exemplar…

Era um gostar… um gostar especial que João tinha a certeza ser o único homem, no mundo, a sentir… Era um gostar que doía, e doía cada vez mais por pensar que a garota nem o olhava, ainda que, a ada vez que passava, se empenhasse num cumprimento de voz trémula a que ela respondia seca e aparentemente sem interesse.

João era filho único e os pais, lavradores desenrascados, sonhavam grande futuro para o rapaz. Talvez por isso o tenham mandado para o Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, em Braga, de influência Jesuíta que lhe viria a proporcionar uma riqueza cultural invejável mas que João, incompreensivelmente, apenas revelava nas noites de embriaguez coletiva da taberna do adro. Porém, para grande pesar de seus pais, João fora apanhado no flagrante dado a uma investida organizada pela maior parte dos seminaristas a uma casa boémia em Dume, execrável maldição para a terra de Martinho da Panóia, esse santo bispo vindo da Hungria para doutrinar o povo minhoto, que a Igreja decretou santo e cujo epitáfio sepulcral autorredigido costumava ser perversamente adulterado em cânticos de bebedeira pelos seminaristas que acorriam à casa boémia de Dume. Muitos contaram também, ainda que o autor nunca tal tenha visto e como tal não possa garantir, que havia sido desenvolvida pelos alunos do seminário maior uma versão de “Pro Repellenda Iactantia”, essa obra primeira do santo da Panóia que defendia a supressão da bazófia fundada por leis de moral, versão essa que, adquirindo honras de encadernação à socapa, gozava honras de catecismo junto dos alunos do seminário menor, o da Nossa Senhora da Conceição.

Assim, João, que estes caminhos e os outros conhecia de cor, viria a ser apanhado na hora da rusga encomendada, não a beber o vinho tinto em taças transbordantes como todos os outros, nem a cantarolar ofensas à cobarde fuga dos bispos bracarenses para Lugo durante a invasão muçulmana, em versos de rima duvidosa que alguns dominavam. Como sempre, era a petulante Joana que o chamava à casa de Dume, que tinha o descaramento de usar um majestoso crucifixo sobre a oponência do peito generosamente descoberto. Nessa noite de suposta ida ao cinema, João seria apanhado de surpresa sobre o suculento corpo da Joana enquanto esta se empenhava em veemências de queixume acerca da generosidade do rapaz no que a tamanho se refere. Este íntimo pormenor de ocasião havia de passar entre os guardas, ganhando legitimamente o epíteto de boca de caserna até, por particularidades de relacionamentos familiares ou camaradagem entre os membros de ambos os lados, chegar aos corredores do dormitório do seminário Conciliar e entranhar-se em João, complementando-lhe para toda a vida o nome próprio com que havia sido batizado em S. Julião. 

Deixando-nos de bisbilhotices – cuja curiosidade do leitor aguça o vício do autor – e passemos à narração da sucessão de acontecimentos a partir daqui. Curiosamente – ou talvez não, pelo cedo que era – João seria o único a ser apanhado com a boca na botija, estranha metáfora que, nem eufémica ou disfémica, levará o leitor a sentenciar a ligeireza do autor por óbvia constatação de que talvez todos, à exceção de João, estariam, àquela hora, a usar a boca, veículo único conhecido para receber o tal néctar dos deuses ou sangue do diabo, conforme o variar da perspetiva, e o coitado do rapaz, por lhe ter faltado a paciência ou ter-se rendido à líbido juvenil, estaria já empenhando outra ferramenta que não a cavidade bucal.

Ponhamos a perversidade de parte para explicar que, perante a particularidade da contagem e atribuição de culpa ou pecado, fácil terá sido por se tratar de um único rapaz, para a reitoria do seminário, aplicar exemplar castigo e aviso aos demais. Chamados os pais a Braga, sequiosos de pranto estes bispos, não foram sequer capazes de esconder ao humilde casal o verdadeiro motivo do castigo. Valeu ao rapaz ter um pai compreensivo e pouco amante desta gente que teima em vestir saias e dar a mão a beijar. O Velhote apenas queria ver o rapaz formado, não o queria ver padre. Não deixou de passar ao filho o solene raspanete mas acordou com a esposa que o assunto morreria ali e jamais a aldeia haveria de descobrir que não foi a consciência do rapaz a ditar que não serviria condignamente os preceitos da santidade e inerente desistência do estudo. Já não se sabe é como a “nobiliária” alcunha chegou chegou à terra, a verdade é que João grande seria para sempre, em S.Julião como em Braga, ainda que na primeira se desconhecesse o real motivo e ignorantemente se presumisse inerente à estatura do moço.

E foi assim que João Grande passou ao lado de uma vida diferente. Espiritual e espirituosamente rico, o rapaz agora homem optou por se dedicar a alegremente sorver a pacatez da aldeia e a desenvolver a cultura das terras dos pais com sagacidade mas sem inovação.
E assim, pacato era também o amor que dedicava à pequena de seios fartos que crescia por entre os paúis junto ao rio. Não raras vezes a viu refrescar-se nas frias águas que rodeavam a azenha, isenta de pudores por se julgar só, e dava por si a recriminar a imaginação que lhe sugeria parecenças com Joana, a moça libertina da casa de Dume. Não, Aida era pura, era jovem, seria certamente virgem e carinhosa por inerência da idade. Aida era bela, mas não era sua.

sábado, 6 de agosto de 2016

nada nos pára

 click for more
Saborear o mar, as serras 
Cobrir-me de pó e geada 
Roer o osso desta terra 
Na vida de estrada 


Onde não há prazos nem obrigações 
Não há debates nem euromilhões 
Onde o sol eleva e a frescura acata 
Sem consulta ao homeopata


Onde a cura é sem vacina 
E a cardina é sem pesar 
Por lagoas e colinas 
Vê-se a lágrima a secar 

Dá o vento na cara 
E nada nos pára 
Nada nos pára 


Fotografia: José Eduardo
Texto: letra da música "vida de estrada", dos Diabo na cruz

quinta-feira, 30 de junho de 2016

minha mãe

não tenho forças nem vontade de escrever... mas tive outrora... num tempo em que o motivo era bem mais feliz.
Sei apenas que me faz bem chorar, quando consigo chorar, porque a tristeza me enraivece e o choro me vem maioritariamente nas boas emoções.
choro agora a recordar esse tempo, essas boas emoções, de quando tudo parecia durar para sempre.
choro ao ler o que outrora te escrevi e choro ao ler o que outros dizem de ti, porque me faz bem...

"Mãe… Rosa…
Mãe… minha Mãe
Nossa Mãe,
Sabes…
Hoje pus-me a pensar
E quando dei por mim
Era de novo gaiato
Nada pacato
mas voltei a sentir
como se estivesses ali e retrocedêssemos no tempo
que me limpavas a cara suja na circunstância
com as pontas dos dedos untadas em saliva
e caminhávamos ambos ao som do vento
na nossa tosca elegância
íamos ao campo
a masseiras ou ao Suzano
fosse eu ou qualquer mano
tu eras só vaidade
com os filhos em redor
alimentados a amor
criados na verdade
na tolerância
na adversidade
sem abundância…
a não ser de amor e carinho…
Trabalho e pés ao caminho! "

segunda-feira, 25 de abril de 2016

25 de Abril, sempre?

nos dias de ontem
era tudo cinzento
e a palavra estava caída
como uma folha sem vida
num dia sem vento

nos dias de ontem
a coragem não vinha
e a boca fechava
e o olhar retornava
em direção à bainha

nos dias de ontem
não morava a esperança
ninguém decidia
e jamais ousaria
iniciar a dança

até que se fez hoje
e um grupo seleto
tocou a reunir
e ousou decidir
debaixo de um teto

e nos dias de hoje
porque alguém assim quis
o povo à rua saiu
levantou a cabeça e sorriu
e chegou-se a mostarda ao nariz

nos dias de hoje
liberto da opressão
o povo dançou
celebrou, gritou
o povo passou a dizer não

até que ainda mais hoje
porque o povo ficou cansado
o dono cá disto tudo
eterno senhor barrigudo
apoderou-se de novo do estado

e agora que é ainda mais hoje
a sociedade, em abdução
já não gosta de estar alerta
senão do vizinho à espreita
o povo... deixou de dizer NÃO!

José Eduardo


quinta-feira, 7 de abril de 2016

a bestificação

(...) Nos dias santificados, dormia-se até quase às dez horas da manhã; depois a gente séria e casada vestia o seu melhor fato e ia à missa, censurando aos novos a sua indiferença em matéria religiosa. Ao regressarem da igreja, comiam tortas de massa, e deitavam-se de novo até à tarde.
A fadiga acumulada durante longos anos tirava o apetite; para poderem comer, era preciso beberem muito, excitarem o estômago preguiçoso com a ardência do álcool.
Pela tarde, passeavam indolentemente pelas ruas; os que possuíam capas de borracha punham-nas, ainda que o tempo estivesse seco; os que tinham um guarda-chuva, com ele saíam, ainda que fizesse sol. Não é dado a toda a gente possuir um impermeável ou um guarda-chuva, mas cada qual ambiciona superiorizar-se ao seu vizinho, seja de que maneira for.
Quando se formavam grupos, conversava-se acerca da fábrica, das máquinas, dizia-se mal dos contra-mestres. As palavras e os pensamentos não se referiam a mais do que a coisas relacionadas ao trabalho. A inteligência desastrada e impotente lançava apenas umas centelhas isoladas, um ténue clarão na monotonia dos dias. Ao voltarem para casa os maridos buscavam questões para discutirem com as mulheres, batendo-lhes muitas vezes, sem pouparem as suas forças. Os novos ficavam na taverna ou organizavam pequenas reuniões em casa dum ou doutro, tocavam harmónio, cantavam canções estúpidas e ignóbeis, dançavam, contavam histórias obscenas e bebiam em excesso. Extenuados pelo trabalho, estes homens embriagavam-se facilmente, e em cada peito desenvolvia-se uma excitação doentia, incompreensível que precisava de encontrar saída. Então, pelo mais fútil pretexto, atiravam-se uns aos outros como animais selvagens. Havia contendas sangrentas. (...)

domingo, 6 de março de 2016

entre-os-rios


(...)
Eliana tinha 23 anos. Era domingo e estava em casa com a mãe e a irmã, Adélia, de 14. O pai via o jogo do Benfica na casa de um primo. O irmão, Hélder, motorista de autocarro, tinha ido trabalhar. De repente, a campainha toca. Era um vizinho a avisar que a ponte tinha caído. Eliana sai em busca do pai, que recebe a notícia com uma certeza: “Foi o Hélder”. Passados 15 anos, o quarto do irmão está intacto: a roupa pendurada nos cabides, a agenda com os serviços marcados. Os pais de Eliana dormem todas as noites no quarto do filho, desde a primeira em que Hélder faltou.
(...)

sábado, 5 de março de 2016

de passagem

...do Chico, o Buarque: Eu te amo

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Conta-me agora como hei-de partir;
Se ao te conhecer, desatei a sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei os meus navios
Diz-me para onde é que ainda posso ir;
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz-me com que pernas devo seguir;
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu;
Como, se na desordem do armário embutido
O meu casaco enlaça o teu vestido
E o meu sapato ainda pisa no teu;
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair;
Não, acho que te estás a fazer de tonta
Dei-te os meus olhos para tomares conta
Agora conta como hei de partir...