domingo, 9 de outubro de 2016

João Grande



João, filho de lavradores, gostava de Aida…

João era um rapaz crescido e, por toda a sua vivência, havia já experimentado gostar de muitas raparigas. Porém, desde há uns tempos que achava diferente o sentimento que dedicava àquela pequena que, ainda há pouco, deixara de ser criança.

Não havia dia que passasse sem que João se convencesse a si mesmo de que aquele não era um gostar qualquer, era especial… Era um gostar que lhe apertava a garganta a cada vez que a via no quintal ao passar para as várzeas… Era um gostar que fazia com que sentisse ciúme de todos aqueles marmanjos que rondavam a azenha da várzea em adulação aos atributos físicos da pequena… Era um gostar que o levava a adorar a beleza angelical inerente à idade da pequena e não tanto a opulência do seu peito… Era um gostar que o fazia ter mais gosto no cultivo das várzeas do que das Searas, esquisito num agricultor exemplar…

Era um gostar… um gostar especial que João tinha a certeza ser o único homem, no mundo, a sentir… Era um gostar que doía, e doía cada vez mais por pensar que a garota nem o olhava, ainda que, a ada vez que passava, se empenhasse num cumprimento de voz trémula a que ela respondia seca e aparentemente sem interesse.

João era filho único e os pais, lavradores desenrascados, sonhavam grande futuro para o rapaz. Talvez por isso o tenham mandado para o Seminário Conciliar de S. Pedro e S. Paulo, em Braga, de influência Jesuíta que lhe viria a proporcionar uma riqueza cultural invejável mas que João, incompreensivelmente, apenas revelava nas noites de embriaguez coletiva da taberna do adro. Porém, para grande pesar de seus pais, João fora apanhado no flagrante dado a uma investida organizada pela maior parte dos seminaristas a uma casa boémia em Dume, execrável maldição para a terra de Martinho da Panóia, esse santo bispo vindo da Hungria para doutrinar o povo minhoto, que a Igreja decretou santo e cujo epitáfio sepulcral autorredigido costumava ser perversamente adulterado em cânticos de bebedeira pelos seminaristas que acorriam à casa boémia de Dume. Muitos contaram também, ainda que o autor nunca tal tenha visto e como tal não possa garantir, que havia sido desenvolvida pelos alunos do seminário maior uma versão de “Pro Repellenda Iactantia”, essa obra primeira do santo da Panóia que defendia a supressão da bazófia fundada por leis de moral, versão essa que, adquirindo honras de encadernação à socapa, gozava honras de catecismo junto dos alunos do seminário menor, o da Nossa Senhora da Conceição.

Assim, João, que estes caminhos e os outros conhecia de cor, viria a ser apanhado na hora da rusga encomendada, não a beber o vinho tinto em taças transbordantes como todos os outros, nem a cantarolar ofensas à cobarde fuga dos bispos bracarenses para Lugo durante a invasão muçulmana, em versos de rima duvidosa que alguns dominavam. Como sempre, era a petulante Joana que o chamava à casa de Dume, que tinha o descaramento de usar um majestoso crucifixo sobre a oponência do peito generosamente descoberto. Nessa noite de suposta ida ao cinema, João seria apanhado de surpresa sobre o suculento corpo da Joana enquanto esta se empenhava em veemências de queixume acerca da generosidade do rapaz no que a tamanho se refere. Este íntimo pormenor de ocasião havia de passar entre os guardas, ganhando legitimamente o epíteto de boca de caserna até, por particularidades de relacionamentos familiares ou camaradagem entre os membros de ambos os lados, chegar aos corredores do dormitório do seminário Conciliar e entranhar-se em João, complementando-lhe para toda a vida o nome próprio com que havia sido batizado em S. Julião. 

Deixando-nos de bisbilhotices – cuja curiosidade do leitor aguça o vício do autor – e passemos à narração da sucessão de acontecimentos a partir daqui. Curiosamente – ou talvez não, pelo cedo que era – João seria o único a ser apanhado com a boca na botija, estranha metáfora que, nem eufémica ou disfémica, levará o leitor a sentenciar a ligeireza do autor por óbvia constatação de que talvez todos, à exceção de João, estariam, àquela hora, a usar a boca, veículo único conhecido para receber o tal néctar dos deuses ou sangue do diabo, conforme o variar da perspetiva, e o coitado do rapaz, por lhe ter faltado a paciência ou ter-se rendido à líbido juvenil, estaria já empenhando outra ferramenta que não a cavidade bucal.

Ponhamos a perversidade de parte para explicar que, perante a particularidade da contagem e atribuição de culpa ou pecado, fácil terá sido por se tratar de um único rapaz, para a reitoria do seminário, aplicar exemplar castigo e aviso aos demais. Chamados os pais a Braga, sequiosos de pranto estes bispos, não foram sequer capazes de esconder ao humilde casal o verdadeiro motivo do castigo. Valeu ao rapaz ter um pai compreensivo e pouco amante desta gente que teima em vestir saias e dar a mão a beijar. O Velhote apenas queria ver o rapaz formado, não o queria ver padre. Não deixou de passar ao filho o solene raspanete mas acordou com a esposa que o assunto morreria ali e jamais a aldeia haveria de descobrir que não foi a consciência do rapaz a ditar que não serviria condignamente os preceitos da santidade e inerente desistência do estudo. Já não se sabe é como a “nobiliária” alcunha chegou chegou à terra, a verdade é que João grande seria para sempre, em S.Julião como em Braga, ainda que na primeira se desconhecesse o real motivo e ignorantemente se presumisse inerente à estatura do moço.

E foi assim que João Grande passou ao lado de uma vida diferente. Espiritual e espirituosamente rico, o rapaz agora homem optou por se dedicar a alegremente sorver a pacatez da aldeia e a desenvolver a cultura das terras dos pais com sagacidade mas sem inovação.
E assim, pacato era também o amor que dedicava à pequena de seios fartos que crescia por entre os paúis junto ao rio. Não raras vezes a viu refrescar-se nas frias águas que rodeavam a azenha, isenta de pudores por se julgar só, e dava por si a recriminar a imaginação que lhe sugeria parecenças com Joana, a moça libertina da casa de Dume. Não, Aida era pura, era jovem, seria certamente virgem e carinhosa por inerência da idade. Aida era bela, mas não era sua.

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