domingo, 13 de março de 2011

Desencontro



Tempos houve em que ele não gostava dela… A figura franzina, de pernas espetadas em sapatilhas metodicamente escolhidas em função única do conforto que proporcionam. A cara sardenta, o cabelo cujas pontas finalizavam em pequenos totós porque um corte curto era sempre uma escolha mais prática. Toda a sua figura representava a personificação do estereótipo de criança insípida. Apesar disso era-lhe, a ele, impossível não reparar no brilho que invadia o olhar dela a cada vez que se lhe dirigia.


A ele, que sempre se achou um pacóvio ignorante camuflado numa permanente interpretação de jovem culto e estudioso, arrepiava-o a possibilidade de representar o alvo de tamanha admiração para alguém e, por isso, sentia o coração invadir a garganta e deixar todo o seu interior vazio e frio a cada vez que se cruzavam e os inocentes olhos daquela pirralha se enchiam de sorrisos tímidos e admiração a si destinados.
Mas não… tal não podia ser… Como haveria ele de encarar os demais mancebos a quem acompanhava nos momentos de estroinice se soubessem de tal facto? Como poderia ele continuar a envolver-se no meio esteticamente viril em acto e pensamento? Seria de uma humilhação insuportável… A possibilidade de se ver privado de convivências nas quais sabia de antemão que o seu carácter não se reflectia mas achava que teria de ser assim… Que o seu coração pleno de amor e cavalheirismo para com as meninas estaria enganado e a realidade seria obviamente à moda daquela gente. De tal forma se esforçava por se convencer daquilo que sabia ser mentira que até conseguiu e, assim pensando, nunca poderia retribuir aquela simpatia, aquele fascínio, aquele Amor!!! Tal não poderia continuar… era impossível entusiasmar-se com a adoração que lhe dedicava a menina franzina de pernas espetadas em sapatilhas confortáveis e cujo conjunto sardas / totós lembravam personagens de banda desenhada…

Foi já bem tarde que descobriu o amor, quer dizer… foi já bem tarde que descobriu a lascívia e a devassidão! Ao cabo de tantos anos negando os ímpetos cavalheirescos que lhe invadiam a alma, acabou por descobrir a beleza dos prazeres que os mesmos lhe proporcionavam. Aprendeu que a simpatia e um sorriso comprometido lhe abriam as portas de um mundo cheio de  deleites, gozos e delícias indolentes que o transportavam aos campos do transcendente… deliciosamente transcendente…
Mas ó diabo! Como era possível que tudo isto contribuísse para o avivar de memórias?
A cada vez que raciocinava acerca disso, acabava por lembrar a tamanha negação a que a havia sujeitado… a ela, menina franzina de pernas espetadas em sapatilhas confortáveis e sardas e totós que lembravam a banda desenhada… a ela… que agora descobria ter sido o seu único verdadeiro Amor!

Os anos passaram… e a ausência dela nunca o incomodou tanto quanto agora o seu regresso.
O olhar dele perde-se agora por umas longas pernas nada espetadas que, nas suas calças skinny de dupla lã, terminam em moderníssimas (não menos confortáveis) e extremamente femininas sabrinas que passaram a envolver seus pés agora propositadamente delicados.
O pensamento perde-se na finíssima cintura de uma blusa branca com motivos de extremo bom gosto e que apresenta um irresistível decote nada generoso mas pleno de sensualidade e determinação. As sardas não se ficaram pela face e, para ele, isso tornava-a ainda mais presente e complementava aquele novo estilo e personalidade, aquele novo ar… Um ar de mulher confiante, sabida, estudada… Tudo o que ele outrora julgava ter sido.
O tom da sua pele havia escurecido e isso contribuía para acentuar o contraste com o branco do olhos que, pasme-se, continuavam a brilhar… mas já não para ele…

É por isso que sofre agora… Preferia que o ignorasse, mas não, continua a sorrir-lhe, só que já não por admiração. Continua a sentar-se na mesma mesa de café que ele, agora não porque o deseje, apenas porque é simpática e se apercebe que ele é, agora, um desgraçado emocional nada empreendedor…
Dói-lhe ainda mais pela empenhada simplicidade dela… Dói-lhe porque se senta ao pé de si, acende de forma burguesa um cigarro e enceta uma conversa que, dada a forma e conteúdo interessantes, o deveria fascinar mas…

Os olhos dela já não brilham para si!


mini conto por: José Eduardo


Fotografia: Créditos incluídos na foto

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