quarta-feira, 21 de abril de 2010

Mark Twain morreu há cem anos

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Autor d'As aventuras de Tom Sawyer, o menino que queria navegar no mississipi...
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(...) Mas no mesmo momento de tristeza e desespero, teve uma inspiração. Nada menos que uma grande e magnífica inspiração. Pegou no pincel e pôs-se a trabalhar tranquilamente. Pouco depois apareceu por ali Ben Rogers. De entre todos os rapazes, temia a troça daquele, mais do que de nenhum. Ben vinha a saltar e a pular, comia uma maçã e de vez em quando soltava um melodioso grito seguido por um dingue-dongue-dingue-dongue, como se fosse um barco a vapor.

- Parar a estibordo! Tlim-tlim-tlingue! Parar a bombordo! Avançar para estibordo! Parar! Deixar virar devagar! Tlim-tlim! Tlingue! Tchau-tch-tch! Cuidado com o leme! Depressa, agora! Dois graus a bombordo! O que estão a fazer? Atem uma corda a esse tronco! Encostem agora e deixem seguir. Pararam as máquinas, capitão! Tlim-tlim-tlingue! Cht! Cht! Cht!

Tom continuou a caiar sem fazer caso do barco a vapor. Ao fim de um momento, Ben disse:
-Estás atrapalhado?
Nem palavra. Tom olhava para as últimas pinceladas dadas, com um olhar de artista, depois pegou no pincel e deu outro retoque, tornando a olhar como antes. Ben pôs-se ao lado dele e Tom sentiu crescer água na boca só de olhar para a maçã, mas não parou de trabalhar.

Por fim, Ben perguntou:
- Tens de trabalhar, hein?
Tom voltou-se rapidamente.
- Ah! És tu, Ben! Não tinha dado por ti.
- Olha, vou nadar. Não gostavas de ir também? Já se vê, tens de fazer esse trabalho, não tens? Está claro que tens.
Tom olhou-o por momentos e por fim perguntou-lhe:
- A que é que tu chamas trabalho?
- Então isso não é trabalho?

Tom continuou a caiar e respondeu despreocupadamente:
- Talvez seja e talvez não. O que eu sei é que é muito do agrado de Tom Sawyer!
- Não me queres fazer acreditar que gostas disso. O pincel continuava a mover-se.
- Gostar disto? Não vejo porque não hei-de gostar. Nem todos os dias um rapaz como nós tem ocasião de pintar um tapume.

Isto punha as coisas noutro pé.

Ben parou de comer a maçã. Tom pintava cuidadosamente, movendo o pincel de um lado para o outro, dava um passo atrás para ver o efeito, retocava aqui e ali, tornava a ver o efeito e, entretanto, Ben olhava para tudo aquilo cada vez mais entretido, até que, passados momentos, disse:
- Deixas-me caiar um bocadinho, Tom?

Tom pensou um instante, esteve quase a consentir, mas mudou de ideia.
- Não, não! Não pode ser, Ben. Bem vês, a tia Polly é muito exigente com este tapume. Deita para a estrada... Ainda se fosse do lado de trás não me importava e ela naturalmente também não. Mas ela tem lá umas esquisitices com esta vedação. O serviço tem de ser feito com muito cuidado. Em mil rapazes, talvez até em dois mil, não haveria outro que o fizesse como deve ser.
- Não? É muito difícil? Deixa-me experimentar! Só um bocadinho! Eu, se estivesse no teu lugar e tu fosses eu, deixava.
- Ben, eu também gostava de te deixar, palavra, mas a tia Polly... Olha, o Jim quis fazer isto, e ela não deixou; Sid quis fazê-lo e ela não deixou. Ela não deixou Sid! Já vês a minha atrapalhação. Se tu caiasses isto e acontecesse alguma coisa?!
- Ora! Tolices! Eu tomo tanto cuidado como tu. Deixa-me experimentar! Olha, dou-te o cascabrulho da minha maçã.
- Pois sim... Não, Ben, não pode ser. Tenho medo...
- Dou-te toda a maçã que ainda tenho.

Tom abandonou o pincel, mostrando certa relutância, mas, com o coração cheio de alegria e enquanto aquele que pouco antes era um barco a vapor trabalhava e suava ao sol, o artista reformado sentou-se num barril à sombra a abanar as pernas, a mastigar a maçã e a planear o sacrifício de outros inocentes.

Material não faltava, porque os rapazes passavam constantemente. Vinham para troçar, mas ficavam a caiar. Quando Ben estava estafado, Tom aproveitou a ocasião para contratar Billy Fisher, que lhe deu uma estrela de papel em bom uso. Logo que este se mostrou farto, Johny Miller deu um rato morto com uma corda atada ao rabo, para que o deixassem caiar um bocado.

O negócio continuou assim, e, quando se chegou ao meio da tarde, Tom deixara de ser o pobre que era de manhã, para nadar em riqueza, pois tinha adquirido, além das coisas já mencionadas, doze berlindes, parte de um berimbau, um estilhaço de vidro azul para ver através dele, o resto de uma espingarda, uma chave que não servia para nada, um pedaço de giz, a rolha de vidro de um frasco, um soldado de chumbo, um casal de rãs, um puxador de uma porta, uma coleira de cão (sem cão), um cabo de faca, quatro bocados de casca de laranja e um bocado de janela.

Passara um bocado de tempo agradável e a preguiçar, sempre acompanhado, e o tapume levara três demãos de cal. Se se não tivesse acabado a cal, teria conseguido arrastar todos os rapazes da aldeia para a bancarrota. Afinal, Tom já não achava que a vida fosse tão oca.

Descobrira, sem o saber, uma grande lei que rege a humanidade e que é: para se conseguir que um homem ou um rapaz cobice uma coisa, basta tornar essa coisa difícil de obter. Se fosse um grande e sábio filósofo, como o autor deste livro, teria compreendido então que trabalho consiste em tudo que se é obrigado a fazer e que prazer consiste naquilo que se não é obrigado a fazer.

Este raciocínio tê-lo-ia ajudado a entender porque se chama trabalho aos trabalhos forçados e a fazer flores artificiais, enquanto que jogar o berlinde ou escalar o Monte Branco não passa de um divertimento.

Há senhores muito ricos, em Inglaterra, capazes de guiar carros de passageiros puxados por quatro cavalos num caminho de vinte ou trinta milhas todos os dias no Verão, porque para isso têm de pagar uma quantia considerável. Mas que se recusariam a fazê-lo se lhes oferecessem um ordenado, pois isso passaria então a ser considerado trabalho.(...)
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