quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

@ Caim (na arca de noé)

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Entretanto, porém, uma das noras de noé, a mulher de cam, havia morrido num acidente. Ao contrário do que deixámos antes dito ou dado a entender, havia uma grande necessidade de mão-de-obra na barca, não de marinheiros, é certo, mas de pessoal de limpeza. Centenas, para não dizer milhares de animais, muitos deles de grande porte, enchiam a abarrotar os porões e todos cagavam e mijavam que era um louvar a deus. Limpar aquilo, baldear toneladas de excrementos todos os dias era uma duríssima prova para as quatro mulheres, uma prova física em primeiro lugar, pois dali saíam exaustas as pobres, mas também sensorial, com aquele insuportável fedor a merda e urina que traspassava a própria pele.

Foi num desses dias de tempestade desabalada, com a arca a ser sacudida pela tormenta e os animais a atropelarem-se uns aos outros, que a mulher de cam, tendo escorregado no chão imundo, foi acabar sob as patas de um elefante. Lançaram-na ao mar tal como se encontrava, ensanguentada, suja de excrementos, um mísero despojo humano sem honra nem dignidade. Por que não a limparam antes, perguntou caim, e noé respondeu, Vai ter muita água para se lavar. A partir deste momento e até ao final da história, caim irá odiá-lo de morte.

Diz-se que não há efeito sem causa nem causa sem efeito, parecendo portanto que as relações entre uma coisa e outra deverão ser em cada momento, não só patentes, mas compreensíveis em todos os seus aspectos, quer consequentes quer subconsequentes. Não nos arriscamos a sugerir que deva ser incluída neste quadro geral a explicação da mudança de atitude da mulher de noé. Pode ela ter pensado simplesmente que, faltando a mulher de cam, outra deveria ocupar o seu lugar, não para acolitar o viúvo nas suas noites agora solitárias, mas para recuperar a harmonia antes vivida entre as fêmeas mais novas da família e o hóspede caim, ou, por palavras mais claras e directas, se antes ele tinha três mulheres à sua disposição, não havia nenhum motivo para que não continuasse a tê-las. Mal sabia ela que na cabeça do homem rondavam ideias que tornavam absolutamente secundária a questão. Em todo o caso, como uma coisa não empata a outra, caim acolheu com simpatia os avanços dela, Aqui onde me vês, apesar da idade, que já não é a da primeira juventude, e tendo parido três filhos, ainda me sinto muito apetecível, e tu que achas, caim, perguntara ela. Havia muito tempo que deixara de chover, a enorme massa de água entretinha-se agora a macerar os mortos e a empurrá-los docemente, no seu eterno balanceio, para a boca dos peixes. Caim tinha assomado à janela para ver o mar que resplandecia sob a lua, havia pensado um pouco em lilith e em seu filho enoch, ambos mortos, mas de uma maneira distraída, como se não lhe importasse muito, e foi então que ouviu sussurrar ao seu lado, Aqui onde me vês.

Dali foram, ele e ela, para o cubículo onde caim costumava dormir, não esperaram sequer que noé, já entregue aos braços de morfeu, se ausentasse do mundo, e, quando acabaram, o homem teve de reconhecer que a mulher tinha razão no juízo que sobre si própria havia feito, ainda estava ali para lavar e durar, e mostrava ter, em certos momentos, uma experiência acrobática a que as outras não haviam conseguido chegar, fosse por falta de vocação natural, fosse por inibição causada pela actuação tradicional dos respectivos maridos.

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